sexta-feira, 23 de novembro de 2007

ESPECIAL| Redesenhando a vida através das letras

Nada mais mágico e encantador que o desvendar das letras, do mundo de possibilidades que elas podem proporcionar. Maria de Lourdes dos Santos de Jesus, 68 anos, sabe como poucos esta importância. Há três anos matriculada no Colégio Antonio Vieira, no programa Educação para Jovens e Adultos, Dona Lourdes, como é conhecida, vem com muita coragem e persistência lutando para descobrir o significado das palavras.

O desafio é muito grande, mas a estudante continua firme. No início, os obstáculos pareceram intransponível; os olhos não ajudavam, o estado de saúde também não. Mas a força de vontade está fazendo com que ela siga em frente. “Quando entrei aqui não sabia escrever e nem ler. Quando me chamavam para assinar o meu nome na ficha do médico era o maior constrangimento”, diz Dona Lourdes, com um olhar triste, como se relembrasse da situação, que logo mudou. “Agora não, eu sei escrever o meu nome. Quando me chamam para assinar estou sempre pronta”, enfatiza.

Dona Lourdes não pôde estudar na infância e nem na adolescência, porque teve que trabalhar muito cedo para ajudar a família e, logo depois, para cuidar dos filhos, contudo nunca esqueceu da importância do estudo. Não é à toa que, aos 68 anos, com pressão e colesterol altos, mas, acima de tudo, com um sorriso largo e contagiante, ela enfrenta a noite e o caminho tortuoso para chegar à escola. Moradora do bairro de Engelho da Federação, pega dois ônibus para chegar ao bairro Fazenda Garcia, onde fica localizado o Colégio Antonio Vieira, e mais dois para voltar para casa, por volta das 11h da noite.

O esforço para alguns alunos em decodificar as letras é tão grande que alguns precisam da ajuda dos colegas numa luta diária para realizar os seus sonhos. A conquista é única para todos: aprender o significado das letras e, consecutivamente, do mundo. Num pedaço de papel aparentemente inofensivo se esconde para muitos um emaranhado de letras, que a primeiro instante parece um obstáculo difícil de ser transpassado. Mas aos poucos as primeiras letras A, B, C mostram-se um delicioso caminho de vitórias. O olhar mágico desvenda o doce significado das letras e a realidade antes desconhecida pela ausência dos significados se torna familiar.

Esta realidade de exclusão educacional e falta de oportunidade na infância e na adolescência não está somente restrita a Dona Lourdes. O programa desenvolvido pelo Colégio Antonio Vieira, há 35 anos, atende em média cerca de mil alunos, de idade entre 17 a 68 anos, das classes populares do Salvador, que não tiveram a oportunidade de estudar no período certo, pois a maioria teve que trabalhar. Apesar disso os alunos correm atrás para recuperar o tempo perdido e para também conquistar novos sonhos e amigos.

Um exemplo de superação é Jurandy América Ferraz dos Santos, 66 anos, que mora no bairro da Fazenda Garcia e recebe uma pensão do falecido marido. A pensionista menciona que a escola é mais que um espaço de educação, pois ali consegue fazer várias amizades e amenizar a depressão: “Com a morte do meu marido acabei ficando sozinha em casa. Por isso decidir voltar à escola. Aqui tenho vários amigos e não me sinto mais só”. O maior desejo de Jurandy é continuar em frente com os estudos: “O meu maior sonho é seguir em frente com o meu desenvolvimento escolar, passando de ano”.

Já Celina Alves dos Santos, 58 anos, ressalta: “Quando eu era pequena os meus pais não tiveram condições de bancar os meus estudos, por isso comecei a trabalhar com 11 anos e tive o meu primeiro filho com 15 anos”. Por um instante Celina deixa aparecer através da expressão facial que caminha pelas lembranças do passado, voltando ao presente ao pegar lápis da carteira e dando um suspiro. O maior sonho de Celina é ler e escrever. Em um determinado momento da entrevista, Cecília entusiasmada, comenta: “Adoro ver pessoas que escrevem rápido e um dia quero escrever assim”.

Na mesma sala de Celina e de Jurandy estuda Simone Souza Pereira, 22 anos, que desde 12 anos não estudava porque gostava mais de sair com as amigas para as festas do que ir para escola, menciona a importância de ter pessoas mais experientes como as colegas na sua sala. “Eu vejo que elas são interessadas no estudo, nunca faltam. Além disso, elas me mostraram que a vida pode ser diferente, pois elas estão correndo atrás. Eu antigamente achava que se estivesse no lugar delas não estudaria, porque ninguém contrata pessoas que não sejam bonitas e jovens”, comenta com a cabeça baixa.


Valorização do ser humano

As aulas decorrem entorno do desenvolvimento social e das relações inter-pessoais. Os alunos, independente da sua idade ou classe social, são tratados como seres humanos, na verdade não são somente alunos, mas, sim, Marias, Josés, Pedros, Joanas, Lourdes. Os professores não são os detentores do saber, mas, sim, facilitadores do aprendizado, porque na sala de aula o conhecimento é construído em conjunto, comenta com muita satisfação a coordenadora do programa, Marlene de Souza e Silva.

A professora de alfabetização Mônica Sá Barreto, graduada em Serviço Social, pela Universidade Católica do Salvador, e Normal Superior, pelas Faculdades Jorge Amado, vem desenvolvendo, ao longo de sua carreira, trabalhos voltados para esta inclusão social. E a alfabetização é justamente um meio que vislumbrou para atingir o seu objetivo: educar. A alfabetizadora salienta que a maioria dos alunos são das camadas populares e trabalhadores domésticos, que trabalham e moram no entorno, e de pessoas que vêm de outros bairros.
A educadora Mônica compõe uma equipe com cerca de 40 professores, que se relacionam com os alunos de forma carinhosa e afetiva. Esta por sinal é uma marca do método educacional adotado pelo programa. Vendo nesta metodologia uma forma de compreender o universo destas pessoas que trabalham no diurno e estudam à noite.

Além disso, a educadora ressalta que o Colégio Antonio Vieira importa-se com todos os detalhes, desde transporte dos alunos ou material que eles vão utilizar: “O Colégio se preocupa com todo o processo, desde transporte, quando percebemos que os alunos não têm as mínimas condições, até o material didático que é produzido na sala de aula, pois não dispomos de livros”.

Logo na entrada da sala dos professores, e em quase todo o Colégio, uma imagem de Nossa Senhora da Educação protege os alunos. Na mesma sala, o entra e sai de alunos é constante, pois muitos procuram os professores para conversar sobre os mais diversos assuntos. E os professores sempre estão dispostos a atendê-los.

A coordenadora do programa salienta que a escola tem que se adaptar ao processo de aprendizado dos adultos, pois a grande maioria das escolas não tem uma metodologia adequada para o desenvolvimento das potencialidades destes alunos. “Os Jesuítas foram muitos felizes em realizar uma educação para trabalhadores de baixa renda. Todos os espaços da instituição são disponibilizados. Além disso, temos como ponto principal o desenvolvimento humano”.

Nas mesmas carteiras, durante o dia, onde sentam os filhos das autoridades políticas e de artistas renomados, à noite, sentam os moradores dos bairros populares, que muitas vezes são empregadas domésticas ou porteiros dos prédios destes artistas ou políticos, sem a menor distinção.

Já a professora Mônica, enfatiza que tem o maior orgulho de seu trabalho: “Este trabalho é minha realização profissional e pessoal. Tenho muito orgulho de trabalhar com este grupo, pois é um grupo que está interessado na educação no seu sentido mais genuíno”.

(junho de 2006)