terça-feira, 20 de novembro de 2007

ESPECIAL DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA| Cotistas mostram bom desempenho

No Dia Nacional da Conciência Negra, o Meu mundo em movimento publica uma reportagem analisando os cinco anos de implantação do sistema de cotas em algumas universidades públicas brasileiras. A reportagem foi publicada no caderno espacial Dia da Consciência Negra, de A TARDE. Confira!

Cinco anos se passaram desde a implantação do sistema de cotas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) - pioneira no Brasil a adotar, por medida de lei estadual, a reserva de vagas para estudantes negros e oriundos de escola pública. A medida, apesar do tempo e de diversas discussões calorosas (contra e a favor), ainda continua a gerar muita polêmica em todo o País.

Prova disso é o embate entre os que acreditam que as cotas são a melhor maneira de incluir socialmente os negros na universidade e aqueles que vêem essa ação como medida paliativa e racista, porque divide a população entre brancos e negros e não atinge o cerne da questão, que é a melhoria da educação pública.

Qual das duas partes tem razão neste debate? Os a favor ou os contra as cotas? A resposta a esta pergunta talvez esteja longe de um consenso. Mas a legalização das cotas, não. Dois projetos de lei (Lei das Cotas e Estatuto da Igualdade Racial), em tramitação atualmente no Congresso Nacional, tentam sancionar as cotas em todas as universidades públicas.

Mas os contrários a essa medida, como a antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Yvonne Maggie, são radicais ao afirmar que a reserva de vagas para negros compromete o princípio de igualdade previsto na Constituição brasileira. "O Brasil optou por um caminho de separar legalmente a população entre brancos e negros, com a discussão destes dois projetos de lei. Estes projetos, se votados e aprovados, vão mudar o Estatuto Jurídico Brasileiro. E isso é grave", responde Yvonne, apreensiva com a possibilidade.

Frei David dos Santos, diretor-executivo da ONG Educafro, refuta a opinião da professora Yvonne, dizendo que ela está equivocada. “O projeto de Cotas e o Estatuto da Igualdade “irão, sabiamente, combater a separação que já está implantada no Brasil e que gera a exclusão. Esta separação oficial começou com a definição jurídica de que negros eram escravos dos brancos e não tinham direito à cidadania“.

Segundo o ativista, a mais recente análise dos dados da Uerj, agrupando as informações destes cinco anos de cotas, revela que os alunos não-cotistas obtiveram média global de 6,37 pontos, enquanto os cotistas obtiveram média de 6,51 pontos.Estudos feitos, em 2006, pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) para avaliar o desempenho dos estudantes cotistas, em diversos cursos, também revelam que os cotistas tiveram desempenho igual ou superior aos não-cotistas em 56% dos cursos.

Nas graduações de alta concorrência, como as de comunicação social (jornalismo e produção cultural), por exemplo, 100% dos estudantes cotistas obtiveram coeficiente de rendimento entre 5,1 e 10,0 em todo ano de 2005, contra 88,9% dos não-cotistas. É o caso do estudante do 5º semestre de jornalismo, Neumar Rosário de Almeida, dono do melhor escore do curso da Faculdade de Comunicação.

No curso de medicina, o mais concorrido da universidade, 93,3% dos cotistas apresentaram coeficiente de rendimento entre 5,1 e 10,0, contra 84,6% dos não-cotistas.Antes da implantação do sistema de cotas, a média geral de participação de estudantes de escola pública na Ufba era de 39,8%. Atualmente, esse quadro aumentou para 48%, com variação a depender do curso.

"Naturalmente isso não caracteriza que os estudantes cotistas são melhores que os não-cotistas. Significa apenas que os cotistas estão fazendo um grande esforço para ter um bom desempenho na universidade, e eles estão conseguindo", destaca o pró-reitor de Ensino de Graduação da Ufba, Maerbal Marinho.

Uneb tem 6,5 alunos nas cotas

Neste ano, o sistema de cotas na Uneb completou cinco anos, com as primeiras turmas de formados. Segunda universidade no Brasil a adotar o sistema de cotas, a Universidade Estadual da Bahia (Uneb), em 2002, por meio do Conselho Universitário, determinou que 40% das vagas do vestibular fossem reservadas para estudantes negros oriundos de escolas públicas.


Apesar das duras críticas que recebeu no início, sendo acusada de criar um processo racista de seleção, a Uneb, atualmente, tem números grandiosos de inclusão: dos 16 mil estudantes da universidade, 6.500 são cotistas. Segundo o coordenador do Projeto de Acompanhamento, Manutenção e Avaliação de Ações Afirmativas (AMA) da Uneb, Manoelito Damasceno, nestes cinco anos, foi possível verificar que a avaliação de desempenho dos cotistas é positiva, porque já se identificou que não há diferença entre o desempenho acadêmico dos alunos cotistas e não-cotistas.

Quando questionado se com os bons resultados do sistema não seria a hora de acabar com a reserva de vagas, o coordenador foi enfático: “Não. Isso depende do processo e de seus resultados. Se o efeito está sendo positivo, não tem por que mudar. A medida deve ter um caráter que atenda à realidade. Quando tivermos condições sociais igualitárias, as cotas irão, naturalmente, acabar”.

Quem é negro - Uma das principais polêmicas que envolvem o sistema de cotas, nas universidades que adotam a reserva de vagas para estudantes negros, é como determinar quem é ou não negro. Esta polêmica se agravou depois do caso dos irmãos gêmeos idênticos (univitelinos) Alex e Alan Teixeira da Cunha, 18 anos, que se inscreveram pelo sistema de cotas da Universidade de Brasília (UnB), em junho de 2007.

Um dos irmãos foi aceito no sistema, o outro, não. Tempos depois, após uma grande repercussão nacional, a universidade recuou na decisão e decidiu aceitar os irmãos pelo sistema de cotas. Essa situação fez com que a UnB mudasse o processo de seleção dos cotistas. Agora, conforme o edital do vestibular 2008, os candidatos que se declararem negros ou pardos deverão ser submetidos a uma entrevista presencial com uma equipe da instituição. Antes, os estudantes precisavam apenas enviar fotografias para se candidatar às vagas reservadas a negros e índios.

PERFIS Neumar Rosário, estudante cotista com o melhor escore da Facom

Nascido no primeiro dia de março de 87, Neumar é um pisciano, mas garante que isso não é nada que vá definir sua personalidade. O pai Osmar trabalha como gari e a mãe Neusa vende frutas e doces num pequeno comércio em Pernambués, bairro onde vivem. “Eu moro com meus pais, mas à noite fico na casa de minha vó. Eu não gosto da idéia dela dormir sozinha”.

Além da companhia, Neumar ajuda também nas contas da casa. Das duas casas.Testemunha de Jeová, o aspirante a jornalista começou a trabalhar como menor aprendiz no Centro de Recursos Ambientais (CRA) quando estava na 8ª série do ensino fundamental e está lá até hoje. Foi a isenção da taxa do vestibular da Ufba que o motivou a fazer as provas. “Sem isso eu nem teria me inscrito”.

Ele escolheu o curso de jornalismo por causa da afinidade com as matérias humanas.Quando perguntado sobre o sistema de cotas, pelo qual ingressou na universiade, Neumar hesita. Ele balança seu tênis all-star bege, ajeita a manga da camisa de algodão com listras azuis, procura as palavras com um olhar distante. “Acho que as cotas não são a melhor solução para o problema do acesso à universidade, mas talvez funcionem como um início de um processo que tente equacionar melhor a educação no nosso país”, diz.

Neumar tem as melhores notas de sua turma, no curso de jornalismo, incluindo alunos cotistas e não-cotistas. Apesar de ter tido média dez numa disciplina considerada muito difícil, ele garante que não estuda mais que os outros, mesmo porque “tempo mesmo só à noite, depois do trabalho, e aos finais de semana”.

Dedicação maior, não pode dar, porque precisa trabalhar. Sem o salário que recebe no estágio, Neumar afirma que não estaria estudando hoje na Ufba, mesmo sem ter de pagar mensalidade. “Eu não me vejo sem trabalhar. Eu não teria dinheiro para pegar um ônibus ou pagar uma xerox da faculdade”.


ENTREVISTA "A medida não surgiu do nada"


Primeira mulher negra a assumir o cargo de reitora em uma universidade pública no Brasil, Ivete Sacramento foi decisiva para a adoção das cotas na Bahia. Longe da cadeira de reitora, mas não da universidade, continua a lutar pelo direito de acesso. Em entrevista ao A TARDE, ela revelou o processo para implantação das cotas na Uneb.

A TARDE - Como se deu a implantação das cotas na Bahia?

Ivete Sacramento - Em 2001, a Câmara dos Vereadores, por meio de uma indicação do vereador Valdenor Cardoso, hoje presidente da câmara, enviou uma proposta, aprovada em plenário, à Secretária Estadual da Educação, para que a Universidade Estadual da Bahia implantasse cotas para negros.

AT - Quais foram as primeiras medidas para adoção das cotas?

Ivete Sacramento - A primeira medida que tomamos foi apoiar pré-vestibulares, na época só tinha o Steve Biko, que tivessem recorte racial. De que forma nós apoiamos essas iniciativas? Com a isenção da taxa do vestibular. A segunda medida foi estudar o vestibular em si para ver se na elaboração das provas nós estávamos beneficiando um ou outro segmento. Então verificamos, e isso não esta restrito somente ao vestibular da Uneb, que o vestibular era elaborado pensando em quem tivesse cursado pré-vestibular. Em tese, o vestibular era elaborado e privilegiava uma determinada classe social. Então precisamos ter um nível democrático na elaboração do vestibular, e isso significava se basear a elaboração do vestibular nas diretrizes de educação média do Estado. E foi o que fizemos.

AT - Isso significava uma prova diferenciada para os estudantes cotistas?

Ivete Sacramento - É um equívoco dizer que os candidatos cotistas seriam avaliados por meio de uma prova diferenciada. A prova é a mesma. É o mesmo sistema de avaliação. O que difere o cotista do não-cotista é que ele faz uma opção. E ao fazer a opção para ser cotista, ele tem que está enquadrado em determinados critérios: ser estudante da rede pública e se declarar negro.

AT - Mas a noção de ação afirmativa estava clara?

Ivete Sacramento - Naquele momento a noção de ação afirmativa e afrodescendência não estavam em questão ainda no Brasil. Para se ter uma idéia, da abolição da escravatura a adoção das cotas, nenhuma ação afirmativa concreta tinha sido realizada para melhorar a qualidade de vida do povo negro do Brasil. Então, primeira contribuição que a adoção das cotas na Bahia favoreceu, foi a discussão de quem é negro no Brasil.

AT - Muitas pessoas desconhecem a história por trás das ações afirmativas. Como a senhora avalia isso?

Ivete Sacramento - O grande equívoco é pensar que esta medida surgiu do nada. Não. Esta medida é fruto do trabalho, especialmente do Movimento Negro Unificado, que vem discutindo, desde 1976, formas de se ampliar à participação do negro na economia e no desenvolvimento deste País. E a criação das cotas é uma destas medidas.

Colaborou o repórter MATHEUS MAGENTA